segunda-feira, 30 de novembro de 2009

DESABAFO CORINTHIANO

OS "FLAMENGUISTAS DO CORINTHIANS" ou "A TIRANIA DA INTIMIDADE"

POR: WANDERSON LIMA

Richard Sennett, em O declínio do homem público, argumenta que nossa sociedade construiu sua sociabilidade calcada numa “tirania da intimidade” que confunde e desequilibra a relação entre vida pública e vida privada. Neste modelo social, as pessoas se vêem ostensivamente na obrigação de demonstrar traços de sua personalidade no espaço público. É preciso se confessar e revelar o íntimo em público; é preciso chorar em programa de auditório; é preciso, sempre, embaralhar as fronteiros do pessoal, do familiar com a esfera pública. Estamos iludidos de que a intimidade constitui um valor moral de per si. Assim, um político, um ator, um jogador de futebol – enfim, pessoas “públicas” – são dignos de nossa admiração se, e somente se, forem capazes de burlar a “frieza” e a “distância” exigidas no trato da coisa pública, envolvendo-as num calor humano emanado pela intimidade. Guardemos na memória essas idéias de Sennett, aqui resumidas bem por alto, e pensemos no futebol brasileiro. Diz-se que jogador de futebol não tem time, que ele deve agir como “profissional” e se esquecer do tempo em que “torcia”. Nesta ótica,o jogador deve, em tese, separar com bastante clareza a esfera íntima da esfera profissional. Ele deve “dar o sangue” pelo time que lhe paga – e se esquecer desta atitude irracional (e pouco lucrativa) que é torcer.Certo? Se concordarmos com o diagnóstico de Richard Sennett acerca da tirania da intimidade, esta crença deve ser matizada. O jogador deve ser profissional, mas... tem de ser “sincero”, “autêntico”. O jogador deve deixar transparecer que é mercadoria vendável, mas não um ser corrompido: seu coração de torcedor está ali puro, ainda que soterrado por camadas e camadas de dólares. Isto, claro, irrita os torcedores mais fanáticos, aqueles que professam a religião do futebol, socados nestas igrejas chamadas “torcidas organizadas”. Porém, fora eles, para os mais “sensatos”, isso ressoa como “força de caráter”, “sinceridade”. Quem não já ouviu, a respeito de políticos, frases como “Ele rouba, mas é sincero”? A sinceridade e a autenticidade, da política ao futebol, vão tomando lugar do cuidado com a coisa pública, com o dever profissional. Essas reflexões vêm bem ao propósito dos “flamenguistas do Corinthians”, como os apelidou a imprensa [Leia mais aqui]: Ronaldo, Souza, Jucilei e Felipe. Jucilei, o ingênuo da turma, revelou o sentimento geral: “A gente torce desde pequeno, mas está no Corinthians e tem que jogar pelo Corinthians. Na minha opinião, acho que o Flamengo vai ser campeão. Estou torcendo para o Flamengo ganhar o título”. Mais adiante ele é mais enfático: “Eu tenho que jogar. O Corinthians que paga meu salário” [Leia e veja aqui]. Uma pérola do estilo!Leitor, escolha a conjunção adequada para emendar estas duas frases, tão triviais sozinhas, mas tão cheias de subentendidos juntas! De minha parte, observando bem o contexto, considero um “pois” insuficiente senão vier acompanhado de um advérbio, por exemplo, de um “infelizmente”. Vejamos, de relance, a atuação profissional desses flamenguistas hoje (29/11): o Ronaldo saiu mais ou menos aos 20 minutos do primeiro tempo depois de uma encenação teatral bem fraquinha; só descobri que o Souza ainda estava em campo quando ele tentou tomar um cartão vermelho, que um incompetente árbitro recusou a dar-lhe; o Jucilei caprichou na arte de marcar mal, colaborando decisivamente no primeiro gol; o Felipe se recusou a pular num pênalti porque teria achada injusta a tal penalidade. Se é assim, por que ele pulou em tantos outros pênaltis injustamente marcados? O que vimos hoje, domingo, 29 de novembro, foi uma vitória da autenticidade sobre a responsabilidade pública (profissional). Os “flamenguistas do Corinthians” – enfatizo – foram autênticos. Agiram, pois, de forma anti-ética? Dentro da lógica da intimidade que, segundo Sennett, rege a nossa sociedade a resposta talvez seja um não. Seguindo uma tendência forte, quiçá prevalecente no comportamento social, eles sacrificaram a esfera pública no altar dos valores íntimos, agindo mais como torcedores do que como profissionais. Foram sinceros, mas irresponsáveis. E isto é grave, pois leva uma desconfiança tremenda à organização do campeonato. E, de quebra, pode ter prejudicado (inocentemente?) dois times paulistas e um gaúcho. Digo “pode ter” porque o bom time do Flamengo nem precisava de “moleza” do adversário para vencer um time combalido e desarticulado.

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